terça-feira, 10 de agosto de 2010

África do Sul: Conflito, Verdade e Religião


O mês de abril do ano de 1994 fechou, com uma eleição de participação de todas as 'raças', meio século de apartheid na África do Sul. Durante a era do apartheid mais de 18.000 pessoas foram mortas e 80.000 oponentes do apartheid foram detidos, 6.000 dos quais foram vítimas de tortura. A Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul (CVR) foi autorizada a investigar abusos de direitos humanos cometidos entre 1960 e 1994, e ofereceu anistia para indivíduos em troca do testemunho do que realmente teria acontecido no passado. A missão da CVR era dar o panorama mais completo possível das violações que ocorreram durante o período, focando nas graves violações de direitos humanos definidos como assassinato, sequestro, tortura ou tratamento degradante.

As Bases Cristãs para a Reconciliação

O Arcebispo Desmond Tutu, o chefe da CVR, valeu-se de sua posição para promover a visão de que reconciliação era o objetivo mais importante da comissão. Para Tutu, os perpetradores se arrependeriam de seus pecados e as vítimas ofereceriam perdãi, levando à reconciliação entre indivíduos, primeiramente, e, em segundo plano, a nação como um todo. Vestido dos princípios eclesiáticos, Tutu oficializou uma série de ritos na CVR como se estivesse conduzindo um serviço sacro (aberturas com orações, hinos religiosos e velas sagradas em homenagem àqueles que se sacrificaram). Embora a CVR não fosse fundamentalmente estruturada em termos religiosos, o Arcebispo, de formação anglicana, e seu braço direito, Alex Boraine, presidente da Igreja Metodista, certamente imprimiu um tom religioso nos processos da Comissão.
Muitos dos que defendem a efetividade da CVR concordam com Tutu que o perdão (não-punição) era necessária para possibilitar a reconciliação. Alguns encontram a justificação do modelo da CVR na teologia cristã, que ensina os filhos de Deus a perdoar os seus inimigos e reintregar os pecadores na família de Deus. A mensagem da Igreja sobre verdade, perdão e reconciliação parecem ter sido abraçados com força pela África do Sul pós-apartheid. A estrutura cristã sob a qual operou a CVR era largamente aceita pelos sul-africanos graças à grande importância do Cristianismo no país. Embora seja verdade que uma forma pervertida da religião calvinista tenha santificado o apartheid e a Igreja Reformada Holandesa tenha reclamado que tenha sido ela e não o Partido Nacional que lançou os princípios do apartheid, é igualmente verdade que todos os movimentos de resistência foram influenciados pela teologia cristã. Um Cristianismo porfético se manteve firme durante toda a era do apartheid e, quando a maioria das organizações foram banidas, a Igreja permaneceu sozinha como uma voz legal de protesto. Portanto, não de se surpreender que, no período pós-apartheid, os ensinamentos da Igreja tenham sobrevivido, tornando possível um modelo de perdão.
Ubuntu e Reconciliação
Além da base cristã que fundamentava o perdão sobre a punição, a noção tradicional africana de ubuntu era um recurso legitimador. Ubuntu refere-se à cláusula final da Constituição Nacional, entítulada "On National Unity and Reconciliation", a qual forneceu as linhas gerais para uma comissão de verdade. Tal cláusula estabelece: "There is a need for understanding but not for revenge, a need for reparation but not for retaliation, a need for ubuntu but not for victimisation".
Não existe uma definição precisa, mas entende-se ubuntu como humanização, importância mútua e senso de comunidade. Isso corrobora a visão de que um ambiente de relações saudáveis é um no qual pessoas são capazes de reconhecer que sua humanidade é limitada pela humanidade dos outros. Para Tutu, uma pessoa que vive em ubuntu é mais propenso a desculpar os outros. Tutu encontra no ubuntu a justificação para promover a reconciliação acima da justiça, ou, como ele mesmo coloca, priorizando a justiça restaurativa sobre a justiça retibutiva.
O estudioso das religiões africanas, John Mbiti, confirma que a enfâse do ubuntu na comunidade é um princípio amplamente compartilhado por todos os africanos. Se algo acontece com um indivíduo, acontece para o grupo como um todo e se algo acontece com o grupo como um todo, acontece com o indivíduo. O indivíduo poderia apenas dizer que é algo desde que o grupo o seja.
O entendimento ubuntu da indivisibilidade da humanidade cria uma grande capacidade de se perdoar. Uma vez que um Africano detecte que uma pessoa pretende o bem e que há um desejo de se deixar o errado no passado, o desejo de se perdoar e o perdão vêm quase automaticamente, buscando um futuro que persiga o bem-estar de toda a Humanidade.
Os princípios ubuntu como coletividade, unidade e solidariedade de grupo poderiam promover a harmonia entre os membros da sociedade melhor que o desejo por retribuição, incorporada na forma de adversários em uma litigância. Em uma sociedade de ubuntu, o dever individual precede os direitos individuais. Na África do Sul, foi pedido às pessoas que abrissem mão de seus direitos para encarar os deveres que o ubuntu requiria. O direito individual foi sobreposto pelo direito da sociedade de viver em paz.
Alguns acreditam que a idéia de ubuntu foi uma criação de Tutu e de seus acessores para manipular e justificar um modelo reconciliatório, mas isso não faz sentido quando temos consciência de que a população mais pobre e não-urbana da África do Sul foi a parcela social mais desejosa da consolidação da Anistia. Entretanto, apenas cerca de sete mil pessoas pediram por anistia, a maioria dos quais criminosos comuns esperando convencer os comissionários de que seguiam ordens, e poucos eram grandes chefes do sistema de apartheid. Os requerentes confessaram seus crimes, como exigido pela lei, mas nem todos se arrependeram ou pediram desculpas. Cerca de 16% do requerentes receberam anistia; uma pequena parcela: de uma população de quarenta e três milhões de pessoas, apenas mil conseguiram a anistia com sucesso e foram reintegrados na sociedade.

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