terça-feira, 1 de junho de 2010

A Democracia é possível no Islã?


O termo democracia não faz parte do dicionário do Islã; ele entrou em uso comum apenas na Idade Contemporânea, e em árabe soa como uma transliteração da palavra de origem grega. No Islã, apesar de “democracia” ser entendida literalmente como “o governo ou poder do povo”, a fonte do poder é Deus, que, não exercendo seu poder de maneira direta, delega ao homem a tarefa de ser seu representante na Terra (Corão 2,30), revelando sua vontade por meio do profeta.
Quando de sua morte, Maomé foi substituído por califas com o dever de reger a comunidade segundo as intenções e as regras (morais, políticas e sociais) que Deus manifestou em sua revelação. O Corão enfatiza: a necessidade de promover a justiça e o bem, e de impedir a injustiça e o mal; a necessidade por parte dos governantes de serem justos e da parte dos governados de obedecer; a obrigação por parte dos governantes de consultar com os representantes da comunidade. O livro sagrado afirma, ainda, que todos os crentes são irmãos sem distinção de raça ou de classe. A igualdade dos homens não se refere a um princípio abstrato, codificado em um sistema jurídico ou em um corpo de normas, que valem para qualquer indivíduo, como foi elaborado na Europa com o Iluminismo, mas se refere a uma concreta profissão religiosa, que no Islã, como no Hebraísmo Ortodoxo, é lei. O Islã desenvolveu o conceito de “minoria protegida” (os crentes de outras religiões monoteístas que vivem em um Estado Muçulmano) e, assim como o hebraísmo, reservou para si o pacto e a aliança entre Deus e o povo eleito.
A primeira comunidade de crentes era ligada por um forte senso de solidariedade. Uma afirmação atribuída ao profeta Maomé informa que o sal, a água e os pastos eram de todos, se tratava de um preceito formulado a pró da sociedade beduína, mas que, com o tempo, assumiu um valor universal, indicando a intenção religiosa de salvaguardar o bem-estar comunitário do negativismo individual. Assim, os mesmos princípios políticos de justiça, de obediência e de consultação tinham por finalidade criar uma harmonização entre o sistema de governo e a comunidade dos governados. Do resto, a doutrina política clássica, principalmente aquela sunita, sublinhou que o consenso é um elemento essencial para garantir a eleição do chefe do Estado e a legitimidade de seu poder. “Consultação” e “consenso” podem ser considerados conceitos relacionados à democracia representativa parlamentar, mesmo causando uma dificuldade interpretativa. O grande teórico radical Sayyid Qutb afirmou que “a consultação é uma das bases do governo do Islã”, mesmo sendo sabendo que “para aquilo que é relacionado a consultação, o Islã não definiu uma forma precisa, pois sua aplicação depende das necessidades e das circunstâncias”. A consultação poderia corresponder tanto a um sistema aristocrático quanto a um sistema democrático parlamentar, requisitando da parte dos consultados uma segura competência nas questões de direito e da lei religiosa. A questão da consultação e do consenso são condições garantidas para uma sociedade perfeitamente funcional, ideal e idealizada, como era aquela do profeta Maomé e dos quatro primeiros califas, os chamados “bem-guiados”. Depois que o califado se transformou e depois que a ambição pessoal dos soberanos tomaram frente aos interesses comunitários, nasceu o Estado Patrimonial. O termo que indica o poder real e o estado patrimonial foi descrito pelo filósofo da história política Ibn Khaldun, como “superioridade e obediência da força”, o que aparece como a negação da sociedade perfeita e harmônica que deveria garantir o equilíbrio entre governantes e governados. É conveniente citar que o califa representa o símbolo do estado islâmico clássico: a democracia, então, é entendida como consultação e consenso, em que o soberano detêm um poder arbitrário, sendo que, como qualquer outro governante muçulmano, têm o direito de ser obedecido incondicionalmente a partir do momento em que respeite o Islã e aplique suas disposições. Caso contrário, o povo têm o direito de se rebelar, impondo a defesa da fé e da justiça. Como afirma Sayyid Qutb, “a modalidade da obediência foi prescrita no Corão. É preciso distinguir naquele que governa, o fato de aplicar a lei religiosa e o fato de deter o poder da religião. O governante não recebe seu poder do Céu, ele se torna chefe somente graças a escolha e a liberdade absoluta dos muçulmanos. Cada regime onde se aplica a lei islâmica é um regime islâmico, qualquer que seja sua forma e denominação. A obediência dos súditos é unicamente condicionada e limitada da realização da lei islâmica por parte daquele que comanda”. Assim, no que se trata da consultação, não é claro qual o tipo de regime que se deva instaurar para a lei islâmica. Democracia, aristocracia ou autocracia, tudo parece dar certo quando se respeitam os princípios do Islã.
A falta de reconhecimento de um sistema institucional tem um profundo significado sociológico, como afirma um dos grandes teóricos da revolução iraniana, Ali Shari’ati. Segundo tal teórico, o Islã sustenta a igualdade entre os homens e que a religião é essencialmente um movimento, uma tendência para modificar a realidade (assim como Marx definia o comunismo sendo um movimento que muda o estado das coisas presentes). Portanto, todos os profetas monoteístas foram grandes revolucionários, que lutaram contra os poderes opressivos. Em relação a esses pressupostos, Shari’ati afirmou que “o Islã é a primeira escola de pensamento social, que reconhece nas massas o fator basilar, fundamental e consciente que determina a história e a sociedade”.
A partir do momento em que o Ocidente e o Oriente se encontram, a teoria e a prática política muçulmana sofreram uma verdadeira crise de identidade: a Europa, entre o século dezoito e dezenove começa a mostrar toda a sua potência militar e industrial, toda sua superioridade tecnológica, graças às quais conseguiram submeter ao jogo colonial, de modo direto ou indireto, grande parte do território muçulmano. Muitos muçulmanos sonharam a ocidentalização como meio de reformar seja o islã seja suas estruturas políticas-sociais, ao preço, para os mais extremistas, de rejeitar a religião. Assim, foi fácil entender os conceitos burgueses de liberdade individual, direitos humanos e de democracia parlamentar, como os referimentos teóricos de uma experiência liberal, que é abordada por muitos intelectuais modernos, mas malmente realizada em poucos países, como Egito, Síria ou Iraque. O processo de ocidentalização causou nos muçulmanos um sentimento de tensão e rejeição, fazendo com que eles reivindicassem uma islamização da modernidade, que algumas vezes levou a islamização radical da sociedade e do Estado. O Islã puro foi e é considerado para alguns como uma alternativa real aos modelos importados do ocidente, que aos seus olhos aparentam constituir o único modo de ser da sociedade contemporânea (Segundo o Fim da História - Fukuyama).
A partir da derrota árabe e muçulmana na Guerra dos Seis Dias contra Israel, a dramática insolubilidade do problema palestino, a política agressiva americana no Oriente Médio e o suporte que o Ocidente muitas vezes garantiu aos regimes autoritários da região, desprezando aqueles valores democráticos que os ocidentais insistem em implantar, foi traduzido, por nós, ocidentais, como Islamismo Radical. As desfeitas e a submissão diante dos Estados Unidos e do Ocidente, com “todo seus poderes”, por parte de Israel sionista foram vividas tanto como um castigo de Deus, quanto uma demonstração de que a ocidentalização é uma alternativa ao Islã, e que suas categorias, entre as quais a democracia, não são nem exportáveis nem adaptativas a uma realidade que deseja ser profundamente e totalmente islâmico.
Não é preciso sublinhar muito os fatos históricos, pois é evidente que o modelo democrático que prevalece atualmente, aquele liberal, seja escassamente ou por nada implementável nos países muçulmanos.
A falta de transição nos países islâmicos “democráticos”, de tipo ocidental, não é resultado de fatores religiosos, mas de fatores históricos e políticos. Em primeiro lugar, grande parte dos países islâmicos permaneceu, por décadas, sobre domínio imperialista europeu e, portanto, não pode desenvolver um caminho autônomo rumo às conquistas democráticas. O estado pós-colonial, que nasceu após os movimentos de independência, conservou vícios institucionais e econômicos (a pobreza, o prevalecer das classes dirigentes corruptas, a falta de uma dialética autêntica dos partidos, etc.) que permitiram a instauração de regimes autoritários para governar a transição para o progresso e para a modernização sem desigualdades sociais. Não é por acaso que os movimentos de libertação e os próprios governos que guiaram a transição para a independência e, depois, a própria independência tenham tido um caráter fundamentalmente militar. É claro que o caráter militarista das sociedades médio-orientais islâmicas não favoreceu a caminhada para uma democracia liberal.
As classes dirigentes da maior parte dos países muçulmanos desde o período liberal até os anos cinqüenta e nos anos que os sucederam, principalmente quando as sociedades começaram lentamente o processo de desmilitarização, transformando o Estado em uma reserva pessoal de privilégios. A tomada do poder e o controle exclusivo dos recursos constituíram um segundo obstáculo à democratização.
No Islã existe uma contradição fundamental entre o Estado, a sociedade civil e a nação, elementos característicos da democracia, no verdadeiro sentido ocidental do termo. O Estado não se identifica com a nação e a sociedade civil nem sempre opera a favor do Estado, e vice-versa. O Estado não se identifica com a nação porque o conceito de nação é de importação ocidental e de recente difusão nos países islâmicos: o califado era, por sua natureza, supranacional; e somente a sua crise política e teórica que abriu de fato a estrada para a criação de nações. A sociedade civil raramente opera à favor do Estado porque é ele que a domina, condicionando o desenvolvimento e a pluralidade, assim como acontece, por exemplo, através do controle da mídia e da restrição dos espaços de participação política.
O grande desafio do futuro é a formação de um conceito e de conteúdos de uma democracia islâmica. É irreal pensar em transportar o conceito político democrático ocidental em territórios que tiveram uma história e um horizonte teórico diferente. A necessidade da formulação e da implementação de uma democracia islâmica é imposta seja para salvaguardar a tradição cultural de países e sociedades que, após o contato com o ocidente, passaram por um lacerante processo de alienação; seja porque o conceito ocidental de democracia levou ao falimento que arriscou prejudicar o significado e a funcionalidade diante da opinião pública. Isso significa que a democracia islâmica é livre de adotar eleições e instituições como o parlamento. A questão dos direitos humanos é um assunto difícil de ser abordado, pois muitos intelectuais islâmicos, também progressistas, sublinharam como a universalidade dos direitos humanos seja um preconceito do Ocidente, que impõe a própria visão como universalmente válida (como se fosse um colonialismo cultural). O conceito de direitos humanos no Islã e no Ocidente possuem elementos diferentes. O Islã também reconhece o direito à liberdade, à propriedade, etc. Porém, de um lado, esses direitos são sancionados por Deus e não por um homem. Por outro lado, a dimensão comunitária do Islã prevalece àquela individual. Atualmente, muitos intelectuais islâmicos estão trabalhando em um profundo repensar da lei islâmica na direção de uma releitura sobre as liberdades civis, direitos humanos e pluralismo político e religioso.
O Ocidente tem que reconhecer, antes de tudo, que não é esse o momento de impor a democracia no Oriente Médio, e que é necessário difundir o liberalismo constitucional, que é um assunto ainda ignorado pela população daquela região.
Para quem pensa que o conflito pertence somente ao mundo árabe e que eles não mudaram nunca, é necessário lembrar que, vinte e cinco anos atrás, as grandes manifestações violentas anti-americanas aconteciam em países com Chile, México e Coréia do Sul. As razões eram as mesmas: o povo não gostava os regimes que os governava e viam os Estados Unidos como os responsáveis por esses regimes. Depois, aquelas ditaduras começaram um processo de liberação, a vida das pessoas melhorou, houve reformas políticas graduais seguidas de um abertura democrática. Com o passar do tempo, o sentimento anti-americano foi reconduzido à protestos contra a americanização da cultura.
Somente quando as manifestações de praça contra o Mc Donald's forem a única forma de anti-americanismo que deveria nos preocupar, o Oriente Médio terá alcançado grandes progressos.

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